Crônicas

Shein faz peças a alto custo humano, mas é única que veste todos os corpos | Thais Farage

Hoje a Shein vai abrir a sua primeira loja física na América do Sul e ela fica em São Paulo. A loja será uma pop-up -ou seja, uma loja temporária, no Shopping Vila Olímpia, e promete ter 11 mil peças disponíveis para os consumidores.

Se você estava fora desse mundo do consumo nos últimos anos, eu te resumo em 140 caracteres: a Shein é uma marca de roupa considerada ultra fast fashion, que vende tudo-quanto-é-tendência a preços infinitamente menores que qualquer outra loja que você conheça. É mais barato comprar na Shein que no Brás -ou em qualquer mercado popular do país

A grande sacada da Shein, para além de ser muito barata, é ter uma grade de numeração absurdamente grande. Pessoas gordas conseguem comprar qualqueeeer tendência de moda e também peças clássicas, lingeries, meia calça, cinto, biquini, qualquer coisa na marca chinesa. Ao contrário do que acontece em qualquer marca de shopping do Brasil, onde a numeração, com muito esforço, chega no 46.

Bom, mas a Shein não é só uma marca barata, que vende roupa com baixíssima qualidade, beirando o descartável. A Shein é um modelo de ultra fast fashion que está revolucionando não só o acesso à moda, mas está também revolucionando o jeito de produzir. Enquanto o caminho tradicional do varejo é: desenhar as peças, produzir esses desenhos e enviar para as lojas, a Shein praticamente excluiu a equipe de estilo do seu processo e faz todo o planejamento de marca com a ajuda de muita tecnologia. Através das redes sociais, TikTok, sobretudo, os algoritmos da marca captam as novas tendências, a equipe de produção desenha as peças, os algoritmos validam a possibilidade de venda, e aí sim as peças são produzidas. A Shein não cria nada novo, pelo contrário, sofrem uma penca de processo de plágio. Mas, para o capitalismo sem fronteiras, produzir com tanta assertividade, vale qualquer custo humano —enquanto a Zara ou a H&M demora em média três meses para produzir uma coleção, a Shein leva três dias.

E aí, gente, não precisa ter bola de cristal, não precisa estar no mercado de moda, não precisa ser jornalista investigativo para saber que é óbvio que tem algo de muito errado com esse processo, né? Pois bem, há algumas semanas, o canal britânico Channel 4 divulgou uma investigação feita por eles em fábricas terceirizadas da marca e, adivinhe só? Trabalho análogo ao escravo, naturalmente. As costureiras ganham por peça produzida —que é considerado um formato super preocupante de remuneração, que leva as pessoas a trabalharem em turnos absurdos e exploradores— no caso dessa pesquisa da Shein, os trabalhadores dessa fábrica recebem 20 centavos por peça. 20 centavos de real. E produzem em média 500 peças por dia e trabalham 18 horas todos os dias. Uma tristeza.

Vale dizer, pra encerrar os dados desse texto, tem mais um número que eu acho importante ressaltar: enquanto a Zara produz 35 mil peças por ano e a H&M 25 mil, a Shein produziu 1,3 milhão de peças em 2021, segundo o site the Harris Poll.

Tudo isso para concluir que é óbvio que o modelo de negócio da Shein é revolucionário, mas o jeito de fazer essa revolução tech das roupas, é um desserviço para a indústria da moda. Um retrocesso, um desperdício e também um chacoalhão para todo mundo que acreditou que o slow fashion iria salvar o mundo. Os dados mostram que não estamos consumindo menos, não estamos conseguindo frear o lixo têxtil e o sucesso da Shein mostra, para mim, que tem um problema muito maior em jogo.

A marca chinesa chegou para ocupar um espaço que foi abandonado pelo mercado de moda: as pessoas gordas e as pessoas pobres que não podem consumir tendência em loja de shopping, dirá em lojas de slow fashion. Nós, enquanto sociedade, geramos o desejo, mas não resolvemos o acesso. Quem não quer uma roupa legal pra usar no fim de semana? Quem não quer a última tendência? Quem não precisa de uma roupinha para passar em uma entrevista de trabalho?

Quantas décadas vivemos com as revistas de moda dizendo pra gente que tal item era um must have? E aí, eu te respondo: falaram que todo mundo tinha que ter uma camisa branca, mas quase ninguém pensou nos pobres e nas pessoas gordas, né? A Shein veio e ocupou, sem dificuldade, uma parcela consumidora que foi abandonada pela moda.

Eu, como consultora de moda, sempre respondo que acho, sim, inaceitável que exista uma marca de ultra fast fashion produzindo lixo e vendendo 1,3 milhão de peças por ano. Mas tão inaceitável quanto, é permitir que toda a indústria da moda ignore que uma enorme parcela da população não caiba na grade de tamanhos das marcas. Você, pessoa magra, já imaginou o que é entrar em um shopping e nenhuma loja, nenhuma marca, absolutamente nenhuma ter roupa para o seu tamanho?! Nenhuma. Nem uma calcinha. Muitas vezes, nem os sapatos servem. Já pensou sobre isso? O quão absurdo e desumano é isso?

Não dá pra topar a Shein, mas não dá pra topar uma indústria que ignora as muitas pessoas gordas. A crise financeira também ajuda: em um país onde 90% da população ganha menos de R$ 3.500 é natural que qualquer oferta de roupa faça a felicidade de muita gente. Pobre também tem desejo, pobre também precisa se vestir pra trabalhar, pobre também quer ter estilo.

Sei que é tentador agora, no final desse texto, convocar um boicote e te convencer que comprar na Shein não é humano. Não é. Mas também não tem milagre. A luta contra essa gigante não pode ser das pessoas físicas, chamar para um boicote coletivo é lindo, mas não vai funcionar (como também não funcionou com a Zara, vale lembrar). Também não é justo com quem, de novo, não tem muito outro jeito de consumir moda.

Desconfio que ninguém saiba como realmente se resolve um negócio desse tamanho e aí, no desespero, dê a responsabilidade só e somente pro cliente final —que tem, sim, sua parcela de contribuição, mas, sabemos, não resolve sozinho um problemão desse. Palpitando aqui, desconfio que para desmontar uma empresa que foi especulada em 100 bilhões de dólares, segundo o BOF, seja preciso um esforço de política pública —cuidando dessa importação, exigir algum selo ligado a por exemplo direitos trabalhistas— e também de órgãos internacionais que barrem empresas que usam trabalho análogo ao escravo. Precisa existir uma medida maior e organizada para impedir, ou pelo menos dificultar, essa cara de pau da Shein.

Junto com isso, acredito que a indústria de moda brasileira precisa também parar de só reclamar da concorrência desleal que é a Shein —é!— e se movimentar para incluir as pessoas. As crises econômicas refletem diretamente na moda, que é parte da cultura e não anda sozinha no mundo, mas a escolha de só vestir gente magra, não é só sobre dinheiro, é também sobre gordofobia.

Por Thais Farage

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